terça-feira, 29 de outubro de 2013

Aquela casca da sua ferida

Quando tinha sete anos, caí na calçada de casa, ralei meu joelho direito e passei o resto do dia de cama, com a perna pra cima enfaixada. Não porque isso foi grave.
O machucado ficou com uma casca enorme, que não tive coragem de tirar. Ficou verde, caiu no banho.
Isso quer dizer que a cicatriz está aqui até hoje. Cada vez que a vejo, lembro religiosamente do quanto eu tenho medo de machucados, logo, não tenho perfil aventureiro.
Passando pelas minhas canelas você encontra duas marcas e só.
Ah! Na sobrancelha direita tenho um corte, que não precisou de pontos, mas exigiu muito da minha  resistência...rs
Não é segredo pra ninguém que tenho a memória enfraquecida então, contar cicatrizes ou a falta delas funciona como túnel do tempo, entende?
Aí é engraçado como um pedaço de pele ralada e nojenta, vira um griô. Sabe o que é isso??
São guardiões da memória e da história oral de um povo. Imagina a quantidade de cicatrizes desses caras!
Nesse contexto, quanto mais coruba você tem, menos tempo sobra agora para lamentar coisas que não viveu.
Mais difícil que tentar entender meu raciocínio, é limpar machucado antes de virar cicatriz.
Na hora que ta sangrando e doendo, não tem como imaginar o tipo de casca que irá se formar, simplesmente porque a única coisa que a gente quer, é que pare de doer e sangrar.
Uma vez, meu irmão perdeu o tampão do dedão do pé, jogando bola na rua. Entrou em casa chorando e eu me ofereci para fazer curativo.
Nada do que eu dissesse pra ele naquela hora faria passar a dor, mas eu disse que lavando com água e sabão, aquilo cicatrizaria no mesmo dia. Mentira.
Não sei se ele acreditou, mas consegui limpar aquela pele horrorosa, que podia ser do meu pé, mas não era, porque a história ali não era minha.
Passam dois dias ou dez e aí tudo continua a ser como antes. O sangue coagula, vira casca e cai. Ninguém para de jogar futebol na rua porque arranca o tampão do dedão.
Eu também não parei de andar de patins porque prendi as travas nas duas canelas...rs
Juro que tentei evitá-las como pude, só não tive sucesso.
O bom é que nunca ouvi dizer sobre alguém que passe uma vida inteira VIVO e sem cicatrizes, até porque elas não precisam necessariamente aparecer. Aliás, essas compensam  por não gerarem gastos com curativos e pó compacto depois. Em compensação, o remédio que cura não vende na farmácia...rs
Tudo que hoje é cicatriz já foi muito pior.
Querer ter história sem ter coruba é tão vazio como ter a coruba e não saber da história dela.
Quando vejo as cicatrizes das pessoas, fico tentando imaginar o que é que existe por trás delas.
Na maioria das vezes as minhas ficam pequenas. Tem tantas marcas incríveis, horríveis e inimagináveis, que acabam não condizendo com o perfil dos seus donos. Legal né?
O tamanho da cicatriz não tem muito a ver com felicidade ou a tristeza. No fim é só cicatriz. O machucado já foi.
Ter coruba faz a gente aprender a conviver com ela e num certo ponto, eliminá-la do corpo, com tratamento estético e da alma, com um pouco de sabedoria.
E aí enxergar na cicatriz a oportunidade é só uma questão de tempo, porque se machucado que não cicatriza apodrece a pele e o coração, não faz sentido não procurar um bom cicatrizante.

*Coruba é uma expressão usada costumeiramente pra designar uma corceira na pele. Aqui no blog é ferida, casquinha, nheca mesmo.. rs

Trilha: Deftones/ Feiticeira


















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